Aprovado o OE 2013, Portugal arrisca-se a entrar no "Guinness Fiscal"
por força de um muito provavelmente caso único no planeta: a partir de
um certo valor (1350 euros mensais), os pensionistas vão passar a
pagar mais impostos do que outro qualquer tipo de rendimento,
incluindo o de um salário de igual montante! Um atropelo fiscal
inconstitucional, pois que o imposto pessoal é progressivo em função
dos rendimentos do agregado familiar [art.º 104.º da CRP], mas não em
função da situação activa ou inactiva do sujeito passivo e uma
grosseira violação do princípio da igualdade [art.º 13.º da CRP].
Por exemplo, um reformado com uma pensão mensal de 2200 euros pagará
mais 1045 € de impostos do que se a trabalhar com igual salário (já
agora, em termos comparativos com 2009, este pensionista viu aumentado
em 90% o montante dos seus impostos e taxas!).
Tudo isto por causa de uma falaciosamente denominada "contribuição
extraordinária de solidariedade" (CES), que começa em 3,5% e pode
chegar aos 50%. Um tributo que incidirá exclusivamente sobre as
pensões. Da Segurança Social e da Caixa Geral de Aposentações.
Públicas e privadas. Obrigatórias ou resultantes de poupanças
voluntárias. De base contributiva ou não, tratando-se por igual as que
resultam de muitos e longos descontos e as que, sem esse esforço
contributivo, advêm de bónus ou remunerações indirectas e diferidas.
Nas pensões, o Governo resolveu que tudo o que mexe leva!
Indiscriminadamente. Mesmo - como é o caso - que não esteja previsto
no memorando da troika.
Esta obsessão pelos reformados assume, nalguns casos, situações
grotescas, para não lhes chamar outra coisa. Por exemplo, há poucos
anos, a Segurança Social disponibilizou a oferta dos chamados
"certificados de reforma" que dão origem a pensões complementares
públicas para quem livremente tenha optado por descontar mais 2% ou 4%
do seu salário. Com a CES, o Governo decide fazer incidir mais
impostos sobre esta poupança do que sobre outra qualquer opção de
aforro que as pessoas pudessem fazer com o mesmo valor… Ou seja, o
Estado incentiva a procura de um regime público de capitalização
(sublinho, público) e logo a seguir dá-lhe o golpe mortal. Noutros
casos, trata-se - não há outra maneira de o dizer - de um desvio de
fundos através de uma lei: refiro-me às prestações que resultam de
planos de pensões contributivos em que já estão actuarialmente
assegurados os activos que caucionam as responsabilidades com os
beneficiários. Neste caso, o que se está a tributar é um valor que já
pertence ao beneficiário, embora este o esteja a receber diferidamente
ao longo da sua vida restante. Ora, o que vai acontecer é o desplante
legal de parte desses valores serem transferidos (desviados), através
da dita CES, para a Caixa Geral de Aposentações ou para o Instituto de
Gestão Financeira da S. Social! O curioso é que, nos planos de pensões
com a opção pelo pagamento da totalidade do montante capitalizado em
vez de uma renda ou pensão ao longo do tempo, quem resolveu confiar
recebendo prudente e mensalmente o valor a que tem direito verá a sua
escolha ser penalizada. Um castigo acrescido para quem poupa.
Haverá casos em que a soma de todos os tributos numa cascata sem
decoro (IRS com novos escalões, sobretaxa de 3,5%, taxa adicional de
solidariedade de 2,5% em IRS, contribuição extraordinária de
solidariedade (CES), suspensão de 9/10 de um dos subsídios que começa
gradualmente por ser aplicado a partir de 600 euros de pensão mensal!)
poderá representar uma taxa marginal de impostos de cerca de 80%! Um
cataclismo tributário que só atinge reformados e não rendimentos de
trabalho, de capital ou de outra qualquer natureza! Sendo
confiscatório, é também claramente inconstitucional.
Aliás, a própria CES não é uma contribuição. É pura e simplesmente um
imposto. Chamarlhe contribuição é um ardil mentiroso. Uma contribuição
ou taxa pressupõe uma contrapartida, tem uma natureza sinalagmática ou
comutativa. Por isso, está ferida de uma outra inconstitucionalidade.
É que o já citado art.º 104.º da CRP diz que o imposto sobre o
rendimento pessoal é único. Estranhamente, os partidos e as forças
sindicais secundarizaram ou omitiram esta situação de flagrante
iniquidade. Por um lado, porque acham que lhes fica mal defender
reformados ou pensionistas desde que as suas pensões (ainda que
contributivas) ultrapassem o limiar da pobreza. Por outro, porque tem
a ver com pessoas que já não fazem greves, não agitam os media, não
têm lobbies organizados.
Pela mesma lógica, quando se fala em redução da despesa pública há uma
concentração da discussão sempre em torno da sustentabilidade do
Estado social (como se tudo o resto fosse auto-sustentável…). Porque,
afinal, os seus beneficiários são os velhos, os desempregados, os
doentes, os pobres, os inválidos, os deficientes… os que não têm voz
nem fazem grandiosas manifestações.
E porque aqui não há embaraços ou condicionantes como há com
parcerias público-privadas, escritórios de advogados, banqueiros,
grupos de pressão, estivadores. É fácil ser corajoso com quem não se
pode defender.
Foi lamentável que os deputados da maioria (na qual votei) tenham
deixado passar normas fiscais deste jaez mais próprias de um
socialismo fiscal absoluto e produto de obsessão fundamentalista,
insensibilidade, descontextualização social e estrita visão de curto
prazo do ministro das Finanças. E pena é que também o ministro da
Segurança Social não tenha dito uma palavra sobre tudo isto,
permitindo a consagração de uma medida que prejudica seriamente uma
visão estratégica para o futuro da Segurança Social. Quem vai a partir
de agora acreditar na bondade de regimes complementares ou da
introdução do "plafonamento", depois de ter sido ferida de morte a
confiança como sua base indissociável? Confiança que agora é violada
grosseiramente por ditames fiscais aos ziguezagues sem consistência,
alterando pelo abuso do poder as regras de jogo e defraudando
irreversivelmente expectativas legitimamente construídas com esforço e
renúncia ao consumo.
Depois da abortada tentativa de destruir o contributivismo com o
aumento da TSU em 7%, eis nova tentativa de o fazer por via desta nova
avalanche fiscal. E logo agora, num tempo em que o Governo diz querer
"refundar" o Estado Social, certamente pensando (?) numa cultura
previdencial de partilha de riscos que complemente a protecção
pública. Não há rumo, tudo é medido pela única bitola de mais e mais
impostos de um Estado insaciável.
Há ainda outro efeito colateral que não pode ser ignorado, antes deve
ser prevenido: é que foram oferecidos poderosos argumentos para
"legitimar" a evasão contributiva no financiamento das pensões.
"Afinal, contribuir para quê?", dirão os mais afoitos e atentos.
Este é mais um resultado de uma política de receitas "custe o que
custar" e não de uma política fiscal com pés e cabeça. Um abuso de
poder sobre pessoas quase tratadas como párias e que, na sua larga
maioria, já não têm qualquer possibilidade de reverter a situação. Uma
vergonha imprópria de um Estado de Direito. Um grosseiro conjunto de
inconstitucionalidades que pode e deve ser endereçado ao Tribunal
Constitucional. PS1: Com a antecipação em "cima da hora" da passagem
da idade de aposentação dos 64 para os 65 anos na função pública já em
2013 (até agora prevista para 2014), o Governo evidencia uma enorme
falta de respeito pela vida das pessoas. Basta imaginar alguém que
completa 64 anos em Janeiro do próximo ano e que preparou a sua vida
pessoal e familiar para se aposentar nessa altura.
No dia 31 de Dezembro, o Estado, através do OE, vai dizer-lhe que,
afinal, não pode aposentar-se. Ou melhor, em alguns casos até poderá
fazê-lo, só que com penalização, que é, de facto, o que cinicamente se
pretende com a alteração da lei. Uma esperteza que fica mal a um
Governo que se quer dar ao respeito.
PS2: Noutro ponto, não posso deixar de relevar uma anedota fiscal para
2013: uma larga maioria das famílias da classe média tornadas
fiscalmente ricas pelos novos escalões do IRS não poderá deduzir um
cêntimo que seja de despesas com saúde (que não escolhem,
evidentemente).
Mas, por estimada consideração fiscal, poderão deduzir uns míseros
euros pelo IVA relativo à saúde… dos seus automóveis pago às oficinas
e à saúde… capilar nos cabeleireiros. É comovente… Economista,
ex-ministro das Finanças
A propósito de liberdade e a pedido de muitos, aqui fica o contributo
enorme do Prof. Bagão Felix sobre o "primoroso Orçamento de Estado"
para 2013.
Ouso perguntar: Senhor Presidente da República, vai Vossa Excelência
ficar indiferente a este esbulho?