quarta-feira, março 07, 2007

Já gastámos as palavras pela rua,
meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias:
os teus olhos são peixes verdes
E eu acreditava.
Acreditava.
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo:
meu amor
já se não passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.
(Eugénio de Andrade)

3 comentários:

Anónimo disse...

Já li esse poema em voz alta vezes sem conta! E de cada vez que o leio é sempre tão especial...

Obrigado pelo bom momento que me ofereceste...

Maria Carvalho disse...

Este é um dos poemas mais belos que alguma vez li!! E que não me canso de o ler...cada vez é como se fosse a primeira e como se eu pudesse ter escrito essas palavras. Beijos Dad.

Anónimo disse...

Ele partiu ontem e o adeus foi hoje (dia 7/03), ficou a saudade e a dor da perda fisica. Mas vai brilhar mais uma estrela no ceu e será ele a sorrir para mim. Até breve Pai!