terça-feira, setembro 27, 2005

A INVENÇÃO DO AMOR


Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares
à porta dos edifícios públicos
nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado
por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro
que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes

do tamanho do medo da solidão
da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com caracter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana

Um homem e uma mulher
que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio
A descoberta
A estranheza de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem e uma mulher
um cartaz de denuncia colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou
A TV anuncia iminente a captura
A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam
tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique
Antes que a invenção do amor se processe em cadeia!
Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos

Chamem as tropas aquarteladas na província
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos!
Decrete-se a lei marcial com todas as consequências
O perigo justifica-o
Um homem e uma mulher
conheceram-se, amaram-se, perderam-se no labirinto da cidade
É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los

antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas

Daniel Filipe

(in A INVENÇÃO DO AMOR-excerto)

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