segunda-feira, abril 25, 2005

SHIBOLET- metáfora para nos pôr a pensar, neste dia que passa....

Este texto foi-me enviado pelo Pedro! É lindo e espero que gostem muito, tanto como eu gostei. Neste dia, resolvi publicá-lo! Obrigada Pedro e beijinhossssssssss

Lá estava ele em mais uma chatíssima aula. Aliás, uma aula totalmente desprovida de interesse, sem qualquer aplicação prática ou sequer necessária no futuro. Desde a primeira aula (ou chamar-lhe-emos tortura?) que o seu único objectivo era a frequência no final de Janeiro. E depositava todas as suas esperanças de passar em apontamentos alheios e num livrinho mágico que acreditava ser mais precioso que todas as vezes em que ia a essa aula. O problema não era a aula (não se ponham com essas conclusões precipitadas que os ditos adultos gostam muito de tirar, não sei se por estarem cansados da vida, desiludidos com ela ou se nem chegaram a aprender como dela tirar proveito...). A aula pode ser uma coisa tão divertida e estimulante como uma conversa de café com os amigos... Tudo depende do professor (nem tudo... é claro que sem o nosso esforço e a nossa contribuição a aula nunca poderá resultar... aliás, como em muitas coisas na vida). Professor que, sem uma explicação plausível, se viu promovido a figura fulcral de uma aula. E, aproveitando-se da sua situação (muitas vezes até em desespero de causa), singulariza-a, tornando-a um espaço fechado e reservado, onde poucos ou nenhuns se conseguem imiscuir. O professor desempenha uma posição tão importante como a do aluno, embora com maior destaque. Tanto o professor, com a sua sabedoria académica e a sua mais larga experiência de vida como o aluno, com a sua vivacidade, a sua perspectiva inovadora e a sua ânsia pragmática são peças fundamentais da aula.
Mas como estava a dizer, este professor insiste em não “acessibilizar” as suas aulas. Ao empregar um discurso de extrema densidade e de uma abstracção ainda maior, por maior interesse e empenho que ponha na sua contribuição para a aula só consegue falhar. Ao seu desespero e frustração seguem-se o total alheamento e a própria alergia à aula.
Infelizmente esta é a realidade de muitas aulas. E o maior problema da Educação. Mesmo sem condições, sem dinheiro, sem apoios, sem incentivo, muitas vezes sem nada, o professor deve fazer o seu melhor. Deve dar o máximo para, se falhar, saber que falhou não por si mas por outros factores. Deve dar o seu melhor, o seu contributo para melhorar o estado das coisas. É a sua forma de cumprir a sua missão, de honrar-se a si mesmo e aos que beneficiarão do seu esforço como ser humano e racional.
E como não havia nada de mais interessante a fazer durante a aula e havia que rentabilizar o tempo começou a escrevinhar um conto...

O rapaz que ouvia canções de sonhar

Era uma vez uma morsa chamada Shibolet. Shibolet vivia no Pólo Norte, juntamente com a sua numerosa família: o seu irmão Peirce, a sua irmã Pregnância, o seu pai Análogon e a sua mãe Sémeion.
Como estava farto do frio do Pólo Norte, Shibolet resolveu partir em busca do calor e de novas paragens. Partiu então em direcção ao Sul. Desceu pela Gronelândia e deparou-se com o mar vastíssimo. Como ultrapassar tal barreira? Viu então que havia carreiras regulares da TransAtlântico, entre a Gronelândia e Reykjavik, na Islândia. Decidiu-se e embarcou. No barco encontrou muita gente. Uma gaivota inglesa, que se chamava Gladys, foi a primeira que o cumprimentou. Disse-lhe que conhecia aquela travessia como as penas das suas asas, já que estava sempre a fazê-la. Isto porque, uma vez saída de Dover, a sua terra natal, limítrofe com Calais, no verdadeiro Velho Continente, Gladys perdeu-se nas Highlands e foi parar à Islândia. A partir daí tudo esqueceu e andava desorientada naquele barco, de Reykjavik para a Gronelândia, da Gronelândia para Reykjavik,...
A segunda criatura que Shibolet conheceu foi um gafanhoto bem verdinho chamado Tomé. Enrolado num cachecol vermelho, gorro enfiado na cabeça, Tomé tiritava de frio. Mas, como dizia, amiúde, o frio, nem que fosse um glaciar maior do que o mundo, nunca o venceria, nunca venceria o seu sonho de atravessar o planeta de norte a sul, qual Willy Fogg da nossa era. Nascido no seio de uma família da alta burguesia, Tomé queria conhecer o mundo tal como ele é; não apenas da janela dourada do seu palácio. Um sonho e um desafio nobres. Nobres de valor moral... e nobres de valor monetário. Mas quem mais o fascinou foi Wicca, uma loba de olhos cristalinos, mais profundamente azuis do que um coral do Cabo Espichel. Wicca nasceu em Budapeste, mais propriamente em Buda. Paradoxalmente desiludida e esperançosa com a queda do Comunismo, Wicca partia agora em busca da felicidade; mas uma felicidade que ela não sabia muito bem o que era. Já tinha ido à Austrália, à Grande Barreira dos Corais (donde, quem sabe, lhe ficou a profundidade do azul dos seus olhos), já tinha ido à Índia, local muito na moda para retiros espirituais, já tinha ido à Patagónia, ao chamado “fim do mundo”, e tal como o nome indica, nada encontrou. E agora estava aqui, vinda do Estreito de Bering, onde tentara perceber se o Capitalismo e o Comunismo, aí tão próximos, eram realmente tão diferentes nas suas ambições.
E é a partir daqui que a viagem de Shibolet ganha um novo significado. Aliado à busca, ao conhecimento do mundo, surge agora o desejo de encontrar essa tal felicidade. Soube que a partir daí não mais abandonaria Wicca.
E entretanto chegámos a Reykjavik. O barco atracou e Shibolet, Wicca, Gladys e Tomé saltaram para o cais, juntamente com meia dúzia de passageiros. A primeira imagem da cidade era a de um caldeirão, daqueles que estamos habituados a imaginar quando ouvimos histórias de bruxas. O fumo das chaminés, das furnas, das caldeiras criavam essa atmosfera. Mas era o calor que emanava das casas em choque com o frio que fazia aquela fumarada toda. “Anda daí!”, disse-lhe Wicca. “Onde vamos?”. “Segue-me e confia em mim!”.
Chegaram a um sítio que lembrava uma banheira gigante, com água borbulhante e esverdeada. Wicca mergulhou e ficou a olhar para Shibolet. “Então? Não me digas que tens frio! Ou medo...”. Dominado por uma fúria juvenil Shibolet saltou violentamente para a água.
E então olha à sua volta e vislumbra altas montanhas cobertas de neve, com o topo envolvido em misteriosas nuvens. O céu está escuro, carregado, prestes a rebentar em trovões e relâmpagos. Um estrondo ribomba, estremecendo as entranhas da Terra, e chuva gelada e cortante começa a cair. Mas Shibolet está mergulhado numa atmosfera de calor sufocantemente macio, e o quente vence finalmente o frio.
De repente Wicca mergulha e não volta à superfície. Preocupado e em pânico, Shibolet vai ao fundo. Sente que lhe puxam a perna e por momentos hesita: deverei resistir e emergir para a vida ou deixar-me ir e furar para a morte, em busca de um novo mundo? Invadido pelo desejo do desconhecido, mas preparado para o pior, deixa que o fundo o leve. Fechando os olhos com força vê o universo de estrelas brilhantes à sua frente, estrelas que progressivamente se apagam até o breu dominar.
Com as pálpebras doridas, abrindo primeiro o olho esquerdo e depois o direito, Shibolet ouve a voz de Wicca a chamá-lo. Um cheiro a mar sobe-lhe pelas narinas, lembrando-lhe a sua casa e a sua família no Pólo Norte, e acolhedores raios de sol acordam-no de vez. Recortada pela luz solar Wicca estava à sua frente.
“Segue-me e confia em mim!”. E correm ao longo da beira-mar. Correm quilómetros e quilómetros, sem que a praia acabasse. Finalmente chegam a uma gruta gigantesca, com uma entrada proporcionalmente inversa. Shibolet ia desafiar Wicca a entrarem, mas mal iniciou a sua frase já a loba tinha desaparecido no interior da rocha. Seguiu-a. O interior da gruta era constituído por uma espécie de hall de entrada, bastante largo e alto. No topo uma abertura permitia a comunicação com o mundo exterior e a passagem de luz. As paredes deste hall estavam revestidas por arbustos verdejantes, o que tornava a atmosfera bem fresca. Os raios brilhantes de sol que invadiam a sala de repente esfumaram-se, dando lugar a uma copiosa chuva. Shibolet e Wicca, como que impelidos por uma mola, dirigiram-se rapidamente para o centro do hall, onde podiam receber a água pura. Sentiam o líquido fluir pelos seus corpos e nunca se haviam sentido tão puros, tão próximos da Natureza, tão próximos da sua verdadeira essência. Durante alguns minutos a chuva continuou a cair, até que, aos poucos, foi abrandando, parando por completo. Um silêncio apenas cortado pela água a escorrer pelo verde das paredes, que dava origem a pingos que caíam como setas no chão da gruta, dominava a atmosfera. “Vamos.”, disse Wicca. Caminharam, e caminharam, e caminharam pelas galerias da gruta. Por fim acederam a uma sala em tudo semelhante ao hall de entrada, com a diferença residindo na abertura para o exterior, que era agora gigante, permitindo vislumbrar um deserto vastíssimo. Saíram. Dois camelos estavam a saciar a sede e a acumular reservas num pequeno oásis que existia à saída da gruta. “Já montaste um camelo?”. “Eu nem sei o que é um camelo, Wicca...”. “Então segue-me.”. Já acomodados no dorso de um camelo seguiram a sua viagem. O ar começou a encher-se de um fumo negro e pestilento que a eles se agarrava. No horizonte começaram a surgir várias chaminés fumegantes. “Chegámos a Ulaanbaatar, a capital da Mongólia”, esclareceu Wicca. Uma nuvem espessa e negra envolvia a cidade. Ao chegarem deparou-se-lhes um emaranhado de ruas, cujas fachadas dos prédios, escurecidas e gordurosas, não escondiam o interior decadente de uma das mais pobres nações do mundo. Os oleodutos, com o início da exploração do petróleo, começaram a invadir e a modificar a fisionomia da cidade há poucos anos, tornando-a ainda mais metálica e suja. Ao deparar-se com esta “natureza morta”, uns dos locais da Terra onde podemos vislumbrar o fim do mundo, Shibolet aprende o que não é a felicidade mas sim a miséria, e até onde o homem pode descer na perspectiva de uma salvação económica, nem que essa seja apenas uma magra e tímida hipótese. Ao vaguear pelas ruas, na sua maior parte vazias, mas por vezes cruzadas por seres “mortos-vivos”, sem alma nem espírito, sem rumo nem orientação, encontram um jovem enrolado em vestes tradicionais, recostado a uma fachada do que fora outrora o Banco Nacional da Mongólia, cujos vidros partidos enfatizavam a ruína a que a cidade e a nação mongóis tinham chegado. O jovem ouvia música através de um walkman, luxo da cultura e economia ocidentais. “Como te chamas?”. “Neste país já todos perdemos o nosso nome. De que serve ele se não há ninguém para entoá-lo, dar-lhe vida? Aqui não interessa como se chamam as coisas ou as pessoas. Aqui o que interessa saber é se amanhã estaremos cá...”. “O que ouves?”. “A única coisa que me faz não estar aqui, que me faz viajar pelo mundo perfeito; tomar banho numa praia de areia fina e branca, percorrer uma gruta, viajar pelo mar, conhecer o topo do mundo, enfim... A única coisa que me faz viver. Verdadeiramente!”
Já refeito do choque que foi a estadia na cidade negra de Ulaanbataar e depois de deixarem o rapaz que ouvia canções de sonhar Shibolet apercebeu-se o quanto afortunado era. Sentiu-se ligado ao rapaz que ouvia canções de sonhar. O rapaz que ouvia canções de sonhar vivera o mundo nos seus sonhos na sua imaginação. Também Shibolet tinha vivido o mundo. Verdadeiramente. Só que não o tinha percebido. Uma vontade irrefreável apoderou-se do seu espírito: queria voltar ao Pólo Norte. Aí também poderia viver o mundo, através da sua imaginação. Poderia ir aonde quisesse, e de cada vez que visitasse certo sítio poderia imaginá-lo diferente na próxima vez que lá voltasse. Um mundo infinitamente mais vasto estava ao seu alcance.
De volta a Reykjavik e às carreiras da TransAtlântico Shibolet reencontrou Gladys, sempre de trás para diante e de diante para trás. Encontrou também Tomé, que regressava a casa cansado e desiludido. Afinal o mundo não era tão perfeito como sempre lho tinham dito. Decidido a fazer algo regressava a casa para se despedir da família e de todos aqueles que lhe tinham incutido a imagem de um mundo mágico mas irreal. Queria despedir-se dessa gente e encetar um novo caminho. Estava convencido. Iria candidatar-se e ser o próximo Presidente dos Estados Unidos da América!
Já em casa Shibolet viveu angustiado por nunca poder viver as coisas na sua plenitude, mas ao mesmo tempo completamente feliz por estar sempre a descobrir algo de novo, por estar sempre a fazer erros e a aprender com eles. Aliás, nada lhe dava mais prazer do que fazer algo pela segunda vez, onde pudesse aplicar o que tinha aprendido primariamente.
De Wicca nunca mais ouviu falar. No entanto sentia que ela tinha encontrado o que sempre buscara, que ela estava feliz.
Shibolet e Wicca nunca mais se viram nesta vida terrena, embora tivessem permanecido ligados para sempre.


Pedro Marques

5 comentários:

Anónimo disse...

Rasgar os mundos! Atrever-se!....

Lindo!

Anónimo disse...

Há pessoas e seres que perpassam na nossa vida como a Wicca deste belo conto! Abrem-nos horizontes, fazem-nos perceber como somos importantes, ensinam-nos a liberdade e subitamente, por motivos que muitas vezes nem entendemos,
acabam por desaparecer! É preciso aceitar que a vida é assim e talvez as Wiccas da nossa vida sejam reencontradas, como diz o contos, noutros espaços para além deste! Gostei muito Pedro!
Está lindíssimo e profundo.
Beijinhosssssss DAD

Anónimo disse...

Gostei da metágora! Do sentimento de arriscar e conhecer! Como diria o Paulo Coelho "seguir a nossa lenda"!
Afinal todos somos magos da nossa própria vida!
Sejamos como Shibolet. Estamos em Portugal um país onde a utopia que era a liberdade aconteceu, não foi?

Beijo Ana

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